Confesso que não sou um exímio lavador de louças. Deixo a desejar nos quesitos eficiência e rapidez. Mas me esforço. Outro dia recebi a reclamação de que um garfo estava meio gosmento. Falta de força na fricção da esponja contra o metal. Aumentei a pressão contra o talher para tirar a gordura ali impregnada.
Não sei se é um pouco de TOC — deve ser mesmo — mas eu tenho um processo para lavar a louça. Começo pelos pratos, dos rasos aos fundos, vou para as panelas ou frigideiras, potes de plástico, copos e, por fim, os famigerados talheres. Meu calcanhar de Aquiles.
Lavar a louça sempre me leva a esvaziar a mente, como se todos os problemas do mundo fossem reduzidos à quantidade de detergente que você coloca na esponja ou da água que você permite que saia da torneira. Porém não é incomum que pensamentos mais encorpados me assaltem. Certo dia, uma segunda-feira, dia de pia cheia — sobras da preguiça do final de semana — me bateu a ideia de que a nossa...
Essa é a invocação da Musa que Homero faz no início da Odisseia:
“Ó, divina poesia, deusa, filha de Zeus, mantenha viva para mim esta canção do homem de múltiplos interesses que depois de ter pilhado o âmago da cidadela da sagrada Troia, foi levado a vagar dolorosamente pelas costas litorâneas de outros povos, vivendo segundo seus costumes, bons ou maus, enquanto o seu coração, ao longo de todas as viagens marítimas, sofria em agonia para se redimir e levar seus homens para casa em segurança. Vã esperança – para eles. Os tolos! Sua própria insensatez os desgraçou. Destruir, pela carne, o gado do mais exaltado Sol, razão pela qual o deus-Sol escureceu o dia à sua volta. Faça com que essa história viva para nós em todos os seus múltiplos significados, Ó Musa…”
E hoje me vejo olhando pela janela de uma cidade interiorana de Minas Gerais, dessas janelas que trazem uma paisagem que seria certamente um convite inspirador para o meu Eu do passado, aquele que vivia com uma caneta e um caderno de anotações, escrevendo e poetizando sem...
Todos nós estamos escrevendo um livro. Fazemos isso há muito tempo, mesmo que não nos tenhamos dado conta desse feito, e a superfície de inscrição é o nosso corpo.
Nele, deixamos registrado tudo o que acontece conosco. Nossas experiências, vivências, nossos pensamentos, sentimentos, emoções… Começamos essa escrita lá no ventre de nossas mães e muito daquilo que com ela aconteceu, nós também experienciamos, então esses registros também compõem a nossa história.
Para mim, os livros pedem para serem lidos; toda vez que me aproximo de um livro, eu sinto um convite sendo feito. Olhar o livro, aproximar-me dele… isso acaba por me aproximar de certa forma da pessoa que o escreveu também. Colocar-me aberta ao diálogo e permitir-me atravessar por aquela história é a atitude escolhida para a leitura.
Algo muito parecido acontece quando eu me aproximo de uma outra pessoa. Uma aproximação respeitosa, sem antecipação, sem pré-julgamentos, mas dotada da curiosidade que me move.
O que será que o corpo daquela pessoa é capaz de me contar sobre quem ela é? Sobre o que ela já viveu? O que aquela dor está sinalizando? Em...
Daqui a pouco estarei rindo de mim mesma. Olhando meus cacos espalhados pelo chão com graça, com amor. Fitarei minhas partes com o carinho e a graça necessários para dar significado às sensações, mas sem negar o trajeto que fiz até poder dar risada agora. Ver com humor minhas rachaduras e desacertos.
Com olhos de quem descobre o amanhecer a cada nova chegada, estenderei alguns vazios pela casa, perfumando a rotina com óleos essenciais de maturidade e inocência. Orando aos orixás, firmarei compromisso com o silêncio, sem dispensar a chegada de cada aprendizado novo. De cada olhar fortuito e eterno em paralelo aos banhos demorados de cachoeira.
As águas que escorrem em meu corpo traçam o mapa das minhas curvas em completa consonância com o enredo de minha história. Desviam em algumas marcas que foram fazendo morada em mim ao longo do tempo, com o sentir de cada história. Elas contam os detalhes bonitos das vivências de outrora, como quem fica para não me deixar esquecer dos endereços que me importam. Lembram-me que meu corpo é um templo sagrado e único...